sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Marias, marias...

Aproveitando o início de carnaval, vamos comemorar com um blues, mas não um blues qualquer! Sim, nada mais e nada menos do que Nina Simone. Esbarrei em seu nome por um acaso em uma aula de teatro, por uma indicação, e que indicação! Nunca mais desgrudei da cantora, e muito menos dessa música em especial:




Ain't got no home, ain't got no shoes
Ain't got no money, ain't got no class
Ain't got no friends, ain't got no schooling
Ain't got no work, ain't got no job
Ain't got no money, no place to stay
Ain't got no father, ain't got no mother
Ain't got no children
Ain't got no sisters or brothers
Ain't got no earth, ain't got no faith
Ain't got no church, ain't got no God
Ain't got no love
Ain't got no why, no cigarettes
No clothes, no country
No class, no schooling
No friends, no nothing
Ain't got no God
Ain't got no earth, no water
No food, no home
I said I ain't got no clothes,no job
No nothing
Ain't got ...
And I ain't got no love
Oh, but what have I got?
Oh, what have I got?
Let me tell you what I got
And nobody's gonna take away
Unless I wanna
I got my hair, on my head
My brains, my ears
My eyes, my nose
And my mouth, I got my smile
My tongue, my chin
My neck, my boobs
My heart, my soul
And my back
I got my sex
I got my arms, my hands
My fingers, my legs
My feet, my toes
And my liver
Got my blood
I got life, I've got lives
I've got headaches, and toothaches,
And bad times too like you
I got my hair, my head
My brains, my ears
My eyes, my nose and my mouth
I got my smile and it's my smile
I got my tongue, my chin
My neck and my boobs
My heart, my soul
And my back
I got my sex
I got my arms, my hands
My fingers, my legs
My feet, my toes
Got my liver
Got my blood
I got life, I got my freedom
I've got life


Como um blues, a letra é muito simples, mas é a simplicidade que me atrai, pois nela há uma complexidade que poucos entendem de verdade. Num primeiro momento, ao ouvirmos a música, damos risada, e pensamos pobre coitada dessa mulher que não tem nada! Mas ao prestarmos atenção na segunda parte, especificamente no refrão, vemos que a ideia da música é outra: não, ela tem tudo, ela tem a si mesma, ela tem a sua própria vida. 
A primeira interpretação que tive dessa música tem a ver com a ideia de desapego do budismo, pois a pessoa diz não ter, de fato, nada: sapatos, casa, comida, trabalho, dinheiro, namorado, marido, família, amigos, etc. O que ela realmente tem, de verdade, é sua própria vida, seu corpo, ou seja, ela mesma. Bom, pode parecer que o pensamento que a música transmite é de que não temos pessoas ao nosso lado, e que para nos desapegarmos temos que abrir mão até das nossas companhias, e que o que importa no fim é só nós mesmos; entretanto, não vejo dessa maneira. O fato, para mim, é que um dia iremos morrer e carregar a nós mesmos, a nossa vida. Nessa viagem a única certeza que temos é a morte, e com ela não levamos sapatos, amigos, casa, dinheiro, família, trabalho, eles continuam ali. Ou seja, estamos carregando esse peso sozinhos, cada um com o seu. Este pensamento pode parecer egoísta, mas não é, pelo fato de que quando sabemos que todos passam por isso sozinhos, eu, você e meu cachorro, é quando sabemos disso que sentimos compaixão. Compaixão não no sentido de sentir pena, mas no sentido de que eu entendo o que o outro passa, pois ele passa pelas mesmas situações que as minhas, e é por isso que somos iguais, e é por isso que vou respeitá-lo. Assim, há a ideia de pensarmos em nós mesmos, olharmos para dentro de nós, e nos perguntarmos: o que realmente, o que de verdade verdadeira eu possuo?
A partir daí, lembrei da situação das mulheres nesse mundo patriarcal. Por muito tempo, a mulher só se legitimava quando estava casada. Só ganhava um nome, quando tinha um marido ao seu lado. E novamente me vem a pergunta: o que eu possuo de fato? Bom, se eu morrer meu marido irá continuar ali, e o que será de mim? Apenas uma extensão do meu companheiro? Pra quem leu Madame Bovary, do Flaubert, a obra se inicia e termina com a história do marido de Emma. A mulher é emoldurada pelo homem, sua função é ser esposa, e o que de fato a mulher sentiu, viveu e experienciou, ninguém irá saber. Você irá ser resumida apenas pela delimitação de "esposa amável" em sua lápide. Todo o resto, foi para o túmulo junto. Quem não casava, era mal vista, era (ainda é?) solteirona. 
Com o feminismo, algumas ideias foram iniciadas na nossa sociedade, mas ainda assim, ainda hoje, ouvimos alguém julgando mulheres de solteirona. Todos sabem que ainda temos muito o que melhorar, pois até racismo, homofobia e outros tipos de preconceitos encontramos por aí. 
Enfim, o que somos afinal? 
Nina Simone: mulher e negra. Sua face transmite força, daquele tipo de quem sabe de si, e que continua vivendo. Como a Maria, Maria, não vive apenas aguenta. Aguenta o tranco, e segue acreditando em si mesma. Por maior que seja as desavenças que esteja vivendo, ainda estou aqui, ainda tenho vida, ainda pulso. 
Assisti ao filme "A cor púrpura", e logo pensei no blues da Nina. Há um momento que o "marido" da Celie diz que ela é feia, negra e, pior ainda, mulher! O cara xinga ela e o pior de tudo é ser mulher. A mulher não pode ser feia, tem que atender aos padrões estéticos de beleza, tem que gastar dinheiro com vaidade; a mulher não pode ser negra, pois ser negra é ser inferior para esta sociedade;e a mulher, coitada, nasceu mulher, um ser três vezes inferior. E logo me lembro da força que me traz as feições da Nina, pois para superar essas situações, a pessoa tem de ser forte, e essa é uma força difícil de ser alcançada, a força de acreditar em si mesmo.
Me recordei o quanto os africanos, ao chegar num continente estranho, sofriam. Eles realmente não tinham sapatos, casa, trabalho, marido, irmão, irmã, pai, mãe... o que eles tinham? Eram tratados como uma mercadoria, vendidos, comprados. E mais uma vez, a pergunta: o que de fato eu tenho? Eu tenho minha vida, eu tenho eu mesmo, eu tenho minha liberdade de ser o que sou. Mesmo feia, mesmo negra, mesmo mulher.
E para terminar, mais um bluezinho, vindo do filme "A cor púrpura":

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